terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A PRIMEIRA VEZ


Definitivamente, vou ter que procurar um médico! – pensou em voz alta ao sair do banheiro.

Américo Flores, ou simplesmente Flowers, como era conhecido pelos amigos mais próximos, era um homem que havia dedicado mais de duas décadas de sua vida profissional à advocacia criminalista, tendo concluído sua formação acadêmica ainda muito jovem, por imposição do pai, apesar de imaginar que seria muito mais feliz se tivesse seguido a carreira de jornalista. Sempre foi um homem corajoso, afinal de contas, já havia visto coisas “que até Deus duvida!”, como dizia ele aos amigos nas mesas de bar, às quais frequentava com assiduidade. Aliás, este foi um dos motivos da difícil separação de um casamento com Helena, que durara oito anos, pois ela seguidamente jantava sozinha, reclamação que sempre ouvia quando chegava tarde em casa. E ele, como sempre, inventava desculpas, por vezes culpando o trabalho, ou simplesmente falando a verdade:

- Estava num bar com um cliente! – e essa era uma verdade para ele, já que tinha a ideia de que todos eram clientes em potencial.

- Então esquenta a comida. Está no micro! – retrucava ela, sem prestar atenção à desculpa, e ia dormir.

Nos primeiros meses após a separação, começou a perceber que não sentia a menor falta da esposa, mas admitiu que ela cozinhava muito bem. Era o seu lado irônico e machista tentando compensar a necessidade de comer sanduíches noite após noite, já que não sabia fritar um ovo. Com o passar do tempo resolveu inovar, ficava mais tempo em casa, e até contratou uma cozinheira que deixava a comida pronta no forno de microondas, a única coisa que o fazia lembrar com carinho da ex-mulher. E resolveu que era hora de mudar radicalmente o estilo de vida, e fazer o que sempre gostara, até porque já havia adquirido um patrimônio considerável, além de ter recebido uma herança que lhe proporcionava bons rendimentos. Decidiu fazer jornalismo.

Na faculdade, conhecia pessoas diferentes diariamente, divertia-se com os novos amigos, colegas bem mais jovens do que ele, organizava festas em sua casa, e com o passar dos meses começou a conviver com alunos de outros cursos também. Ticiane era uma dessas novas amigas, uma estudante de medicina, vinte anos mais jovem do que ele, amiga de um amigo, a única mulher que, nos últimos tempos, conseguira impressioná-lo, tanto por sua beleza, como pela afinidade e identidade de ideias, observada nas poucas conversas que tiveram. Só lamentava que ela sempre recusasse seus convites para sair.

E assim, nesse ritmo de vida nova, que incluía faculdade, festas, novas amizades, Américo não sentia mais saudade da antiga profissão, dos amigos de bar, da boemia solitária. Dizia apenas que deveria diminuir o consumo de álcool e parar com o cigarro, mas eram daqueles prazeres tão antigos que já faziam parte do seu dia-a-dia, como se fosse impossível abandoná-los.

Logo no início do segundo ano de faculdade começou a desconfiar de que estava com algum problema de saúde. Observou que ia ao banheiro diversas vezes ao dia, e cada vez que urinava sentia uma ardência muito forte. Naquela noite de março, quando estava no aniversário de um amigo, viu que pela oitava vez estava indo ao banheiro, e novamente sentiu a uretra pegando fogo, foi quando decidiu definitivamente que procuraria um médico.

No dia seguinte, por indicação de um parente, ligou para o Dr. Guilherme Bueno, considerado um dos melhores urologistas de Porto Alegre. O médico disse que estaria viajando para a Europa, e que só seria possível atendê-lo naquele dia, com o que concordou prontamente, já que estava começando a ficar preocupado com as ardências e a dificuldade em urinar. Às quatro horas da tarde, conforme o combinado, Américo já estava sentado na sala de espera do consultório.

Após ser chamado pela recepcionista, entrou por um corredor branco, pouco iluminado, e ouviu vozes numa sala fechada, uma espécie de reunião. O Dr. Guilherme apareceu ao final do longo corredor, e, cumprimentando-o, fechou a porta. Passados alguns minutos, depois de uma conversa rápida, o médico disse:

- Pois então! Parece-me que estas ardências podem estar relacionadas a algum tipo de infecção, e teria que fazer um exame para poder identificar a causa com mais precisão. Se o Sr. tiver tempo, podemos fazer agora mesmo.

- E como seria exatamente esse exame, doutor – num tom intrigado.

- Chama-se toque retal. Aliás, o Sr. já deveria ter feito esse exame há alguns anos; todos os anos, diga-se de passagem. Bem, o exame consiste na coleta de material direto da próstata, e também para sentir como ela está, até porque estou desconfiado de que se trata de uma prostatite. É bem rápido, e não vai levar mais do que alguns minutos!

- Sei, já ouvi falar desse exame. Mas se não tem outro jeito, tudo bem! – quando na verdade pensava exatamente o contrário.

- Então, por favor, tire a roupa, e coloque um daqueles aventais – apontando para um armário localizado no canto da sala.

Enquanto tirava a roupa, tentou brincar com a situação, e perguntou:

- Vai doer, doutor? – e começou a rir de si mesmo.

- Não se preocupe, na primeira vez é só uma sensação desconfortável – respondeu ele, enquanto colocava as luvas de borracha.

- Na primeira vez é desconfortável? E tem gente que se acostuma na segunda?

Como se não tivesse prestado atenção, o médico falou:

- Vá até aquela mesa e fique na posição. O Sr. sabe, “de quatro” – disse o médico, deixando escapar um sorriso debochado.

O avental que Flowers usava deixava toda a parte de trás aberta, e quando o Dr. Guilherme ia começar o exame, perguntou:

- O Sr. se incomoda que chame alguns colegas que estão na sala ao lado para auxiliarem e acompanharem o exame?

- Não, não vejo problemas... - e por um instante pensou, “eu acho”.

O médico saiu, e após poucos segundos – Américo ainda continuava naquela posição constrangedora – entraram pela porta sete jovens, que o deixaram ainda mais envergonhado. Quando a porta estava fechando, alguém a empurrou e disse:

- Espera, sou eu!

E ele reconheceu a voz. Não teve nem coragem de levantar o rosto. Com certeza a voz era de Ticiane. E ela também o reconheceu:

- Oi Américo, que coincidência?

- Muita – disse ele, de modo irônico.

A partir daquele momento, a relação médico-paciente ficou seriamente abalada, uma porque jamais imaginou que os “colegas” do médico fossem estudantes; outra, pela completa falta de sensibilidade com que o Dr. Guilherme fazia o exame nele, comentando detalhes de sua região anal como se estivesse descrevendo alguma fruta, inclusive indicando defeitos em sua anatomia. Além disso, apesar do médico não saber que Américo conhecia Ticiane, ele jamais o perdoaria, e só tentava controlar a raiva que sentia, torcendo para chegar ao fim daquilo que mais parecia uma tortura psicológica.

Terminado o exame, foi embora sem se despedir de ninguém, e tomou uma decisão: não teria mais condições de olhar para Ticiane depois daquela tarde. Quando estava entrando no carro ouviu seu nome, e ao olhar para trás pode ver que ela corria em sua direção com algo nas mãos.

- Você esqueceu a carteira, deve ter caído! – disse ela, ainda ofegante.

- É, deve. Bem, vou indo.

- Espera! Não precisa ficar com vergonha de mim. Imagino que deve ter sido constrangedor, mas não precisa ficar assim. Afinal de contas, vou ver esse tipo de coisa a vida toda.

- É, pode ser. Mas não precisava ter visto a minha “coisa”.

Caíram na gargalhada. E só pararam de rir quando ela aceitou o convite dele para jantar aquela noite.

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