segunda-feira, 21 de novembro de 2011

AS CARTOMANTES (Parte Final)


- Pare!!! Você está louca!

No mesmo instante, ela o olhou com raiva, e sem que pudesse defender-se, ele sentiu um violento tapa no rosto. Decidiu não revidar, apenas segurar as mãos de Ana.

Em questão de segundos, olhou para fora do automóvel, e viu algo que o deixou apavorado.

Um carro da polícia vinha em direção ao veículo em que eles estavam, e lá dentro ele mal conseguia manter imóveis as mãos daquela mulher raivosa. Se os policiais os vissem pelados, um sobre o outro, certamente levariam os dois presos. E pior: o que dizer para a sua esposa?

A jovem remexia-se em cima dele, e mostrava-se muito indignada e ofendida, dizia que ia gritar, e ele prometeu largá-la, se ela mantivesse a calma. Com a cabeça, a moça assentiu, e, mesmo nua, fez menção de sair do carro. Raul a conteve a tempo, e os policiais passaram, sem perceber o que acontecia no interior do veículo. Após a viatura dobrar a esquina, vestiram-se, e ele pediu desculpas. Precisava sair dali, e assim que colocou os pés para fora, ainda a ouviu perguntar se ele procuraria por ela. Raul foi embora envergonhado consigo mesmo, e sequer se dignou a responder, limitando-se a olhar nos olhos de Ana, balançando a cabeça para o lado, e sentindo-se a pior pessoa do mundo.

Ao chegar em casa, mal conseguiu encarar a esposa. Tomou um banho, disse que não estava se sentindo bem, e foi deitar. Na manhã seguinte, quando estava chegando ao escritório, recebeu uma ligação de um número desconhecido. Ficou em dúvida se deveria atender, mas acabou aceitando a chamada. Reconheceu, de imediato, a interlocutora:

- Raul, sou eu. Desculpa te ligar tão cedo, e também queria me desculpar por ontem. Não sei o que me deu. Bem, sabe o que é, eu estava indo pra aula, e bati com o carro. Não conseguia pensar em mais ninguém. Você podia vir me ajudar, sei lá, ficar comigo, registrar a ocorrência, essas coisas? Eu estou aqui na rua...

Ele nem quis ouvir. Desligou o telefone imediatamente. Já tinha definido: ela era completamente louca! Mal o conhecia, sabia que ele era casado, e mesmo assim queria que ele resolvesse seus problemas pessoais? Maluca total!!!

As ligações continuaram, no trabalho, em casa, sem que ele as atendesse, até que cessaram depois de alguns dias. E os meses passaram...

Raul e Ana iniciaram uma terapia, mas a relação dos dois estava cada vez pior. Ela andava muito distante, parecia que o evitava. Não sabia dizer bem o que era, mas ele também havia perdido o interesse na mulher, achava tudo sem graça ao lado dela. Eram desconhecidos morando sob o mesmo teto.

Próximo ao final do ano, durante uma conversa trivial no trabalho, enquanto tomavam um café, Beto lembrou de um assunto que estava há dias para falar com o amigo. Disse que tinha a indicação de uma cartomante, amiga de sua mãe. Dona Missi, como era conhecida, era uma senhora que tinha um dom muito especial. Além de ler as cartas, ela pressentia coisas. Reconheceu que não acreditava em nada disso, mas que cedera à insistência da mãe e concordou em conhecê-la. Ficou de queixo caído com as previsões dela, dizendo que algumas até haviam se realizado.

Desta vez, Raul não se mostrou interessado, considerando o que havia acontecido meses atrás, mas, diante da empolgação do amigo, que sempre se mostrara tão cético, decidiu marcar uma hora, até porque o local era próximo ao seu trabalho, e ficou realmente curioso. Dois dias depois estava sentado em frente à vidente. Dona Missi não deveria ter mais do que 60 anos, muito magra, os cabelos desalinhados numa combinação de cores branco-amarelados, e a pele enrugadíssima, características que conferiam àquela senhora uma feição muito envelhecida e sombria. Fumava de um jeito incessante, praticamente acendendo um cigarro no outro. O ambiente fedia, pois além do odor do tabaco, o lugar abrigava alguns cachorros na sala ao lado. O calor e o mau cheiro do local traduziam uma sensação extremamente desagradável.

Entretanto, não tinha como negar que aquela cartomante apresentava todo o ar de mistério que não havia visto em Leonora, mas isso não foi motivo para deixá-lo satisfeito. Ao contrário, fazia com que se sentisse desconfortável. Durante o atendimento, ora ela olhava para as cartas, ora fixava-se num vazio, como se estivesse vendo alguém, e, de um jeito intrigante, emendava uma frase na outra. Mais de uma vez, Dona Missi mencionou uma mulher que convivia muito com ele. Dizia que ela fazia parte do seu cotidiano, e que era uma pessoa fútil e egoísta, e que, mesmo sendo casada, possuía um amante. "Um não, dois!", tratou de corrigir-se. E não parava de repetir isso.

Raul tentava não pensar em Ana, e, de repente, a vidente fez uma pausa. Passados alguns segundos, perguntou se sua relação andava bem, porque as cartas diziam o contrário. Raul apenas limitou-se a negar, e ela, de pronto, afirmou que o fim do relacionamento dele estava próximo.

O silêncio tomou conta do ambiente. Ela pediu para ele cortar o baralho mais uma vez, e já sentia o suor escorrendo pelo rosto. Estava começando a pensar que deveria pôr um fim naquilo. O ar que respirava, morno, já começava a deixá-lo tonto. Não via a hora de sair dali, parar de ouvir tantas informações que o entristeciam, e tentava, em vão, olhar nos olhos da senhora. Ela parecia estar em transe. E continou, dizendo:

- Meu jovem, as cartas não mentem. As pessoas, sim! Mas você é uma alma forte, e vai saber superar. Ainda mais porque vejo uma mulher se aproximando de sua vida. Ela fará toda a diferença. Ela é muito bonita, não é muito alta, morena, tem uma filha...

Foi quando ele interrompeu a consulta, e disse que precisava ir embora. Inventou que tinha uma reunião, e que havia esquecido. Ela o olhou fixamente, e pela primeira vez pôde perceber que os olhos eram claros, mas cada um possuía uma coloração diferente. Ela assentiu, informando o preço da consulta, e ele pagou. Antes de sair, ela o segurou pelo braço, e disse que se ele tivesse interesse, talvez pudesse ajudá-lo a encontrar essa tal mulher. Ele achou melhor concordar, e Dona Missi concluiu:

-Eu vou lhe enviar uma mensagem com um número de telefone.

Ao sair, sentiu um alívio imenso. Precisava ir embora, respirar o ar puro, e parar de sentir aquele cheiro que o deixava cada vez mais agoniado.

Ao chegar no trabalho, Beto estava num canto, calado. Ele perguntou o que tinha acontecido, até que o amigo se abriu com ele. Disse que estava tendo um caso com Nara, sua colega de escritório.

- Mas ela é casada? - replicou Raul.

- Pois é, e eu era o amante - disse ele, indignado. - Pelo menos eu pensava que era. Agora descobri que não sou o único. Sei que parece ridículo, mas eu achava que significava alguma coisa pra ela.

- Mas, como... - e lembrou-se do que a cartomante havia lhe dito minutos atrás, referindo-se a alguém que ele convivia, e que tinha vários amantes. Bobagem, pensou, mas não pôde negar que a ideia lhe trazia uma sensação de alívio, considerando que até já começava a ter uma leve desconfiança de Ana.

Conversaram mais um pouco e acalmou o amigo, que parecia desolado. O dia transcorreu normal, e, ao final do expediente, Raul recebeu, por celular, uma mensagem da cartomante, com um nome e um número de telefone. Ficou curioso, e resolveu ligar. Como quase todos os colegas já haviam ido embora, dirigiu-se até uma pequena sala, nos fundos do escritório, para ter mais privacidade. Ligou, aguardou um pouco, e alguém atendeu:

- Carol? - disse ele, adiantando-se.

- Sim? - respondeu ela, com uma voz delicada.

- Oi, meu nome é Raul. A Dona Missi me deu o teu número.

- Ah... oi... É, ela me falou de você - respondeu, parecendo indiferente.

- Pois é, na realidade, não sei bem por quê!

- Sei lá, acho que pra gente se conhecer.

Ele começou a ficar excitado com a ideia. Talvez conhecer outra mulher pudesse ajudá-lo a se sentir mais empolgado, feliz, vivo! E aquela conversa realmente o transtornava. E continuou:

- Sim, acho que é isso. A gente podia sair pra tomar um chopp, e se conhecer. O que você acha, Carol? Aliás, seu nome é lindo.

- Obrigada! Bem, eu topo. Mas olha só, já vou deixando claro que não sou mulher de uma noite só. Sou uma pessoa séria. Tenho uma filha para criar, e a pessoa com quem eu me relacionar tem que entender que minha filha é mais importante, precisa de um pai, e não só de um cara que está saindo com a mãe dela.

Desligou o telefone na hora. Não era isso que tinha em mente. E, afinal de contas, sua esposa não merecia isso. Sempre foi uma companheira muito leal e dedicada. Virou-se, e foi quando percebeu aquele vulto próximo à porta. Sua mulher, Ana, chorava, e pôde ver em seu rosto o olhar de decepção. Ela não disse nada, tirou a aliança, deixou sobre uma mesa, e pediu, aos prantos, que ele não voltasse para casa aquela noite. E finalizou:

- Acabou, Raul!

Ele tentou ir atrás, segurou-a pelos braços, ela gritava com ele. O amigo Beto interveio, segurou Raul, e ela foi embora, desesperada.

Depois de alguns instantes, Raul acalmou-se, olhou para o amigo e disse, num tom lamurioso, mas decidido:

- Beto, por favor, nunca mais me fale em cartomantes.

FIM

terça-feira, 15 de novembro de 2011

SONHOS INTERROMPIDOS

Ontem foi um dia muito triste para muita gente. Faleceu Israel, um cara que sequer cheguei a conhecer, mas que era parte importante da vida de pessoas que amo. Morreu assim, de repente, talvez sem dor, mas que deixou uma outra, de saudade, em todas as vidas que tocou. De um jeito estranho, acordei muito triste, porque ele era mais do que uma pessoa boa, como já ouvi repetidas vezes. Ele era o amor de uma mãe, que sonhava em vê-lo feliz, e que vi chorando, sem entender por que as coisas funcionam assim, tentando achar alguma explicação no olhar dos outros filhos, que não sabiam o que dizer, porque não havia o que ser dito. Amor de uma mulher que sonhava e fazia planos de casar daqui a pouco, quem sabe até ter filhos com ele. Não era pra ser! Não agora, quem sabe mais adiante. Morreu um amigo de muitos, que vi em fotos com um sorriso não só de amigo, amor de irmão.

Sabe, a vida é realmente muito curta. A gente olha pra ela com os olhos fechados, faz planos, sonha com o futuro, do jeito que a gente quer que seja. Abre os olhos, e segue adiante. Muitos, não saem do lugar, ainda não entenderam que a direção é pra frente. Dos que saem, normalmente utilizam esses sonhos como um rascunho do caminho, uma direção indicando para onde ir. Só isso! Porque o resto... bem, o resto é uma grande surpresa.

Não tenho muito a dizer numa hora em que a única coisa que se consegue fazer é chorar. Aí, é preciso o silêncio, a reflexão, a oração, que considero de extrema importância, para quem foi, e, talvez, até mais para quem fica. Não há o que explicar, não importam os porquês, não existe um remédio pra passar a dor da saudade, além do tempo. Não nesse momento. Mas tenho a certeza de que tudo acontece por um motivo, e quem somos nós para não acreditar em uma razão justa, em uma explicação de que aquele amigo veio para fazer tudo que fez, e ir embora quando a missão foi cumprida.

Sonhos interrompidos pela ausência física... sim! Mas é inegável que uma existência marcada pela saudade, que traduz um amor insubstituível naqueles que continuam aqui, só quer dizer uma coisa: ele fez tudo que deveria ter feito. E o fez muito bem!

Como disse, ontem foi um dia muito triste para muita gente. Hoje ainda é. Mas a vida continua, e tudo é muito rápido. Daqui a pouco, quando menos esperarmos, nos encontraremos, e quem sabe um dia eu também possa te conhecer e te chamar de irmão.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

MEU LUGAR OCULTO

"La Piel Que Habito", título original do novo filme de Pedro Almodóvar, é daquelas películas que impressionam não só pelo choque de surrealismo e alguns toques de humor negro, mas pela pecularidade de uma história original, e questionamentos dramáticos bem distantes do lugar comum.
Para quem não gosta do cineasta, e não pretende ver o filme, vou fazer uma pequena sinopse, para entenderem do que vou falar. Mas não se preocupem aqueles que vão assisti-lo, pois não contarei nada que possa comprometer qualquer expectativa, até porque, em minha humilde opinião, a obra de Pedro Almodóvar tem características tão individuais, que a surpresa, a sensualidade e, até mesmo, o choque são personagens a parte.
A história narra o cotidiano de um famoso cirurgião e cientista, interpretado por Antônio Banderas, que faz experiências para criar uma pele humana diferente, mais resistente e imune a queimaduras. Por questões éticas, os colegas de profissão posicionam-se contra as experiências em humanos, sem saberem que ele já obteve êxito na descoberta ao utilizar como cobaia, durante alguns anos, a linda Vera, que vive como prisioneira dentro da mansão do médico, sendo vigiada constantemente. Tudo vai se desenrolando sem muita empolgação, até que os motivos da prisão domiciliar, os traumas decorrentes pela morte da mulher e da filha do cientista, e todos os dramas vividos pelos personagens impulsionam o espectador para dentro da trama.
Poderia discutir inúmeras questões levantadas no filme, como por exemplo a falibilidade humana traduzida pela vingança, ou desdobramentos multifacetados da violência sexual, e a dualidade entre amor e ódio. Mas não vou fazer isso, até porque teria que contar o filme, o que, como disse, perderia toda a graça! A minha pretensão com esse texto é abordar, de forma sucinta, uma única questão que se mostra tão singela, e que quase passa despercebida.
A personagem Vera, interpretada pela linda atriz Elena Anaya, sofre um drama de identidade que a direciona para uma sexualidade que não lhe pertence, na medida em que, à toda evidência (e é preciso assistir ao filme para entender essa obviedade), não faz parte de sua essência. Todavia, o que causa estranheza é a calma com que lida com a situação, haja vista que nada justificaria a punição a que esteve sujeita durante anos, e que deixou "marcas" definitivas em seu corpo. Mas, considerando a conclusão a que chegarei, ninguém é responsável pelos atos dos outros. E, em certa parte do filme, ela está assistindo a um programa de televisão, em que uma praticante de Ioga destaca a importância de encontrarmos dentro de nós mesmos um lugar onde ninguém pode alcançar, intocável, e no qual podemos nos refugiar para mantermos nossa verdadeira essência. Acredito que nesse ponto é que reside a explicação para a aparente tranquilidade da personagem.
A Ioga é um método eficaz para isso. A simples meditação, de qualquer forma, e bem conduzida, também auxiliaria nesse contexto. O fato é que não há dúvidas da existência desse lugar, o qual, de uma forma abstrata, protege-nos de qualquer coisa, por vezes, até de nós mesmos. Tenho a certeza de que, para encontrá-lo, há um verdadeiro labirinto, do qual somos os únicos que conhecemos o caminho. É nesse lugar que repousa a paz de espírito, resultado da tolerância e humildade a que somos testados todos os dias.
No filme, até certa parte, convenci-me de que ela havia encontrado essa paz interior, essa liberdade de espírito, esse lugar no qual ninguém poderia alcançá-la, e onde estaria protegida de qualquer mal. Entretanto, ela o fez para sobreviver, na constante agonia que tinha de tirar a própria vida. E só isso! Não me parece tenha compreendido todo o contexto, apesar da dramaticidade da história.
Para mim, a lição de se ter essa paz interior remete a conclusão diversa: podem aprisionar nossa liberdade, afligir o nosso corpo, mas, quando repousamos à noite, temos que ter a consciência limpa para que possamos divagar com pensamentos leves e bons, que não nos persigam diariamente. Não é fácil, tenho consciência disso, mas tudo acontece por uma razão. Disso eu tenho certeza! Não é conformismo, até porque são nossos atos que remetem a isso. Mas fazer o bem, para si e para os outros, melhorar constantemente, enfim, buscar a razão de existir, e aprender com isso, são situações que deveriam acompanhar a vida de todos.
Dessa forma, qualquer ato que traia esse ideal, que macule nossa consciência, que não implique serenidade, acarretará uma tortura natural e constante, em nossos pensamentos e em nosso cotidiano, impondo a escravização do nosso espírito. E, lembre-se: ele só pode ser aprisionado por uma única pessoa... por você mesmo, independente do corpo que habite!