segunda-feira, 12 de abril de 2010

GATO PRETO


Ainda lembro o dia em que conheci meu amigo de infância e vizinho de praia. Gerônimo era daquelas crianças tímidas, sem amigos, um gordinho sem graça. Minha mãe insistiu para que os novos vizinhos viessem jantar com a gente. Achei um saco! Por conta disso, tive que sair mais cedo do jogo de futebol de rua, a maior curtição naquela época. Aquele cara, além do nome engraçado, tinha uma cara de nerd, um perfeito abobado que usava umas roupas estranhas. Durante o jantar ele mal levantava o rosto, e apenas emitia grunhidos num sentido afirmativo quando minha mãe perguntava se queria comer mais massa. Acho que deve ter esvaziado uns quatro pratos. “Chega, filho!”, dizia o pai dele, parecendo constrangido.
A cada verão que chegava, era obrigado a suportar a sua companhia lá em casa, uma vez que meus pais e os dele se tornaram grandes amigos. Ainda bem que moravam no interior, e só nos víamos na praia, senão teria que aguentar isso durante todo o ano. Não apenas os jantares a que me obrigavam a participar, mas a insistência dos meus pais para que eu me aproximasse dele me incomodavam muito.
Com o passar do tempo, fui me acostumando àquela inconveniente presença, e o ignorava, até o dia em que, numa daquelas festas organizadas para adolescentes, uns garotos bem mais velhos do que eu resolveram aleatoriamente me eleger como saco de pancadas. Foi voltando pra casa, sempre mantendo uma boa distância daquele garoto encorpado, a quem me impuseram ser amigo, que ouvi uma voz chamando:
- Imbecil! Tá achando que vai aonde? – gritou comigo um garoto mal encarado, acompanhado de dois amigos, que mais pareciam guarda-costas.
Resolvi não responder e apressei o passo, mas não adiantou. O maior deles veio correndo e, sem que eu percebesse, acertou-me uma voadora. Quando caí, ainda meio tonto e sem ar, e apavorado com o que estava por vir, observei que Gerônimo lutava com eles. Deu um soco num, um chute noutro, e juntando os punhos ao queixo, lançou um olhar cheio de ódio para aquele outro rapaz menor que havia gritado comigo. Ele bem que tentou, mas seu soco foi desviado, e em apenas três movimentos, Gerônimo derrubou-o e, aproximando-se de mim, estendeu uma mão e disse sem olhar nos meus olhos:
- Vem! Corre!
Olhei para trás e os três ainda gemiam no chão. A partir desse dia nos tornamos bons amigos, apesar de ainda achar ele muito estranho. Nunca entendi como podia ser um monstro de tão forte, lutar daquele jeito, e ao mesmo tempo mostrar-se tão submisso aos pais, tão amável com eles.
Vinte anos depois nossa amizade de verão ainda continua, mas não tem mais o convívio de antes, seja pelo trabalho, que me possibilita vir apenas nos finais de semana, seja pela carência da minha esposa. Hoje em dia, inclusive, ela exige ainda mais, de um jeito quase irritante, que eu esteja sempre perto para cuidar dos gêmeos. Eles nasceram em março, e requerem um cuidado literalmente redobrado.
Nessa sexta-feira, quando cheguei na praia, minha mulher reclamava de um gato preto que não saiu do pátio durante toda a semana. Fui até lá, e avistei o felino. Adoro cachorros, mas gatos me irritam. Parecem-me impassíveis aos humanos, como se fôssemos dispensáveis. Não confio nem um pouco neles, ainda mais agora que tenho filhos. Ouvi falar que transmitem toxoplasmose, e eu não correria esse risco. Por isso, fui em sua direção e o espantei. Dez minutos depois, lá estava ele novamente.
- Gato idiota! – gritei, sem a menor paciência.
E corri novamente de encontro a ele. Fugiu. Alguns minutos depois, lá estava o bichano mais uma vez. “Está se achando mais esperto do que eu, é?!”, pensei, com um leve sorriso no rosto, mas indignado. Entrei em casa, fui ao quarto, e voltei. Eu o observava de longe. E, lá fora, já estava escuro.
Ele ficou inerte durante uns cinco minutos, parecia que fitava a lua. Hipnotizado. Aproveitei o seu momento de distração e cheguei sorrateiramente perto dele com um lençol. Consegui apanhá-lo, transformei aquele tecido num saco, dei um nó, e gritei para minha esposa dizendo que já voltava.
Devo ter dirigido por umas dez quadras, e desliguei o motor. Desci do carro com ele nas mãos, desfiz o nó e o bicho saltou de lá num miado agudo, não sem antes cravar aquelas garras em mim.
- Ai, gato filho da puta! – gemi, apertando o braço, na área em que fui atacado.
Voltei para o carro, ainda sentindo dor, mas aliviado com o êxito do meu plano.
Quando cheguei em casa fui ver os gêmeos, dei um beijo em minha mulher, contei o que tinha acontecido, e lhe mostrei o que o gato havia feito. Ela ficou horrorizada, mas pude perceber o alívio em seu rosto. Fiz um curativo em meu braço, desci ao pátio para tomar um vinho, sentar em minha cadeira preferida, e apreciar o resto daquela noite. Já estava na terceira taça, quando ouvi um miado. Era ele de novo, no mesmo lugar em que eu o havia encurralado.
Levantei sem paciência alguma, fui até lá, a passos leves, e agarrei-o por trás, pelo pescoço. Lancei-o com força em direção ao terreno baldio que circundava o meu. Um miado estridente seguido de um barulho seco, e tudo ficou silencioso. Olhei por sobre a cerca, mas a escuridão me impediu de ver o que tinha acontecido. Fui até a garagem e peguei uma lanterna.
Ao iluminar aquele espaço em que o havia atirado, apavorei-me com a cena que vi. Ele tinha caído em cima de umas garrafas quebradas que estavam no chão, e o bicho acabou empalado. Uma das garrafas atravessara aquele corpo mole, e ele ficou estaqueado com as pernas traseiras apontando para baixo, e a cabeça do outro lado, também pendia inerte. Senti ao mesmo tempo nojo e pena, mas não havia mais nada que eu pudesse fazer. Era uma mistura de pelos, carne e sangue esparramada no terreno abandonado. Aquele líquido vermelho escorria por entre os cacos de vidro, escurecendo tudo ao seu redor. E pensei conformado:
- Amanhã eu vejo o que vou fazer. Agora já é tarde.
Sentindo-me arrependido, pedi desculpas inutilmente àquele animalzinho imóvel, e ainda abalado com o que tinha acontecido, fui em direção à porta de casa. De repente, Gerônimo apareceu:
- Oi, cara! Como andam as coisas? – falei, aliviado por encontrar um rosto amigo.
- Tudo bem, mas estou chateado. Não consigo achar meu bichinho de estimação.
E uma pergunta inocente e triste retumbou em mim como aquela voadora que levei anos atrás:
- Você não viu meu gato preto?

3 comentários:

  1. SENSACIONAL... Como as histórias da vida...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Lembrei daquela antiga propaganda do Universitário (acho que é), em que o cara chega na casa da moça e enquanto ela sai da sala ele derruba um machado ou espada, que estava sobre a lareira, em cima do gato. Aí surgem aquelas opções de respostas objetivas... que não lembro quais são (pô, acho que o alemão tá me pegando).

    Mas então. Assim como aqueles caras cantaram “..abra sua mente, gay também é gente...” , pô , eu digo pro amigo do Gerônimo: gato também é um ótimo animalzinho de estimação! Cresci gostando apenas de cachorros. Já adulta, ganhei meu gatinho de presente de aniversário, recebido de uma amiga, com a missão de ser meu companheiro. Desde então leio e ouço histórias sobre esses felinos. Uma delas é que os gatos possuem uma conexão com o mundo espiritual, abstrato. Assim como os cães são guardiões no mundo físico, os gatos seriam protetores no mundo energético. Existem lendas e mitos aos montes sobre esses bichinhos. Ainda mais os da cor preta. Será que seria politicamente correto a gente dizer: gato afrodescendente?

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